Almas que Queimam - Giulia Rizzuto Rosa


Brasil. 18 de Março de 1979.
00:13
Eu e Marcos havíamos terminado. Andava solitária e pensativa pela rua, caminhando lentamente sob a garoa até minha casa. Perdida em meus pensamentos, nem notei que estava sendo seguia. Ou melhor, deveria estar sendo seguida. Um pouco antes de chegar no quarteirão de casa, senti um cheiro de papel e madeira sendo queimados. O cheiro vinha do quarteirão onde havia acabado de passar, e não vi nenhuma fogueira ou queima de nada. Resolvi voltar para averiguar se nenhuma casa pegava fogo, mas após voltas e voltas no quarteirão, concluí que não havia nada. Nisso, segui a rua rumo à minha casa.
Quando estava quase na porta, ouvi um sussurro, acompanhado de passos. Eram quase inaudíveis, por isso não os percebi antes. Quando me virei, dei um pulo e quase caí. Um homem em chamas sacode os braços na esquina, como se pedisse por ajuda. Corri até ele, e ele começou a dizer, em um tom um tanto quanto ameaçador:
- Não sente cheiro de papel queimado, minha querida?
Funguei umas três ou quatro vezes, e foi o suficiente para reconhecer o mesmo cheiro de outrora. Quando me dei conta que o cheiro era dele, percebi que ele era feito de madeira: como um grande e malévolo boneco articulado, com os olhos vermelhos que escorriam algo como sangue, só que mais espesso. Sua boca era um vazio sem fim, tal qual o buraco que era seu nariz. A madeira estava queimada em carvão, mas nem por isso ele desmanchava, ou o fogo se apagava. As roupas eram de papel, mas um papel que se queimava infinitamente, nunca se extinguia. Tudo isso em uma fração de segundos. Quando abri a boca para gritar, ele me golpeou com o que parecia um cajado, um galho flamejante de uns 1,2 metros. A princípio, o golpe apenas me derrubou ao chão. Aos poucos fui perdendo a consciência. Quando estava quase desacordada, percebi que eu também estava em chamas. Mas estas não me queimavam, muito menos ardiam. Elas apenas sugavam minhas forças, aos poucos.
De repente eu acordei. Era a mesma rua, as mesmas casas, a mesma calçada. Quase amanhecia. Levantei-me e olhei em direção á minha casa. Aquilo era um carro de polícia? Sim, e lá estava minha mãe, chorando, aninhada pela farda de um policial uns 30 centímetros mais alto que ela. Fui correndo até eles e gritei:
-Mãe, eu to aqui já!
Mas ela não me olhou. Me coloquei em frente a ela, que parecia não me enxergar. Comecei a pular, gritar e balançar os braços, dizendo: “MÃE, SOU EU, AQUI, NA SUA FRENTE!”. Mas nada.
Após alguns minutos olhado pro nada e tentando entender o que houve, ela olhou pro outro lado da rua e disse:
- Nossa. Que cheiro de papel queimado!
Foi então que percebi: eu estava em chamas. Elas não ardiam nem queimavam. Bom, elas também não de esvaiam as forças. Elas eram parte de mim, e eu delas. Éramos um só. Contemplei-as por um momento, e notei que as labaredas estavam ficando, aos poucos, mais
fracas. Olhei para a frente. Admirei minha mãe. Encarei o policial. E foi aí, num tempo tão rápido que nem eu pude controlar, que tudo aconteceu. Senti uma imensa necessidade de colocar fogo nos dois. E conforme suas forças iam embora, eu me sentia mais e mais forte. E foi assim que eu me tornei esse monstro: não sei como isso foi possível, mas eu me tornei algo como uma sugadora de almas. Causar fraqueza nos outros me torna mais forte. E, estranhamente, eu gosto disso.

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