Monólogo de Maria

Aqui, de frente ao caixão choro por meu amor perdido. João: meu marido, pai das minhas crianças, trabalhador, meu sustento, minha base. Sabe, João nunca quis muita coisa na vida. Uma casinha, aqui no morro mesmo, com as crianças e uma cerveja no fim de semana. Gente como a gente não pode pedir muito mais do que isso não. Essa história de que quem manda só manda porque se esforçou, ah, isso é mentira, balela. Mais do que o meu João se esforçou? Aguentando desaforo e preconceito num trabalho quase que escravo? Isso sim que é esforço, não o que playboy faz, sendo sustentado pelos pais a vida inteira. Mas são eles que levam os créditos. Eu, Maria, mulher da favela, provavelmente não vou ter um futuro muito diferente da minha mãe que, quando papai morreu de tanto beber, teve que arrumar um segundo emprego pra sustentar a mim e meus cinco irmãos. E mamãe, mulher forte, ainda tinha que aguentar xingamento do povo abastado, dizendo que ela só fazia filho pra ganhar ajuda do governo. Agora, meu João morreu, se matou. Acho que ele não aguentava mais dar tudo de si e ainda assim ser tratado como resto. Resto de um povo que separa e maltrata as pessoas por cor de pele, por riqueza (ou falta dela), por gênero. João ainda era negro, além de pobre, e sofria demais. Ele já apanhou na rua por ser negro, sabia? O dono de uma loja achou que ele o tinha roubado e botou dois homens atrás dele. João, meu João, que sempre foi honesto, foi espancado por um roubo que ele nunca cometeu.

Mas é essa a realidade da gente, daqui do morro: pra quem tá do lado de lá, do lado de Copacabana, de Botafogo, da Urca, a gente é só mais um bando de gente vagabunda, que não trabalha – que vive as custas do governo e fica folgado bebendo o dia inteiro. Acham que nossos meninos nascem sabendo roubar, que nossas meninas são todas de programa, que nossas mulheres são todas barraqueiras e cheias de filhos.

Aqui, no Babilônia, a gente sabe como é de verdade: as mulheres sofrem em dois, três empregos, pra sustentar os filhos. Nossos filhos adolescentes sofrem e apanham de policiais que ofendem e machucam por pura diversão. Nossos maridos são acusados de mil coisas que nem sempre são verdade. Nossas garotas são assediadas na rua por causa do jeito que se vestem, e não podem reagir por medo de serem abusadas. A vida não é fácil, aqui na favela, e todo mundo sabe disso. Mas ignoram, afinal é mais fácil julgar sem saber do que levantar do sofá do seu apartamento na zona sul e fazer algo pra mudar isso.

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